sexta-feira, 13 de junho de 2014

Andrea Faggion- Orange is the new black, ou por que cadeia não é melhor que linchamento



Depois de House of Cards mostrando a política pelo que ela é, o Netflix faz mais um ponto pela causa da liberdade. Falo de Orange Is The New Black. É inevitável assistir a série e pensar na hipocrisia de quem se choca com linchamentos para acusados de crimes violentos, enquanto tolera o encarceramento de indivíduos que não cometeram violência alguma. Uma coisa não é melhor do que a outra do ponto de vista da violação dos direitos individuais. 

No entanto, para dizer a verdade, o que mais me faz refletir quando veja a série nem é o modo como o Leviatã encarcera uma mera comerciante e a transforma em alguém que, agora sim, precisa praticar violência para sobreviver. Nisso, eu sempre penso quando vejo um noticiário qualquer. O erro terrível que me angustiou enquanto eu acompanhava a primeira temporada da série foi o próprio encarceramento como pena. E isso, justamente, porque a série não mostra condições materiais terríveis na prisão. Pelo contrário, a violência dos carcereiros contra as presidiárias não é um ponto explorado. Não há estupros (exceto por um caso forjado para incriminar um carcereiro) ou espancamentos, por exemplo. As condições de limpeza também parecem razoáveis. Não há super lotação. A comida não nos lembra dos casos do Maranhão. Em suma, parece que estamos diante do melhor que um presídio poderia ser, dadas as circunstâncias. E é assim que você nota como o cárcere, por si só, é aviltante para a dignidade humana.

Muita gente acredita que basta que a dor física não seja infringida e, pronto, a pena é digna. Eu não entendo o porquê dessa concepção. A autonomia do ser humano, a meu ver, é muito mais atingida quando ele perde o direito de decidir quando ir ao banheiro, o quanto comer, enfim, como conduzir cada mísero detalhe de sua vida, do que quando ele é submetido a um castigo físico passageiro. Em outras palavras, quer me parecer que uma chibatada nas costas seja menos humilhante do que ter que pedir autorização para tomar um banho. O cárcere, em suma, foi planejado para poupar o corpo, mas tirar do indivíduo exatamente a capacidade que o torna humano: a autonomia.

Por essa razão, defendo que o cárcere seja adotado, não como pena, mas como proteção da sociedade em casos extremos, quando o indivíduo, por exemplo, mostra-se um assassino ou estuprador em série. Mas também não estou defendendo o retorno de penas físicas. Penso que a melhor maneira de punir um indivíduo que não represente um perigo real para a integridade física dos demais seja o trabalho: ele causou um mal, terá que produzir um bem proporcional. Por exemplo, um indivíduo que roubou o equivalente a 50 mil reais teria que reparar esse prejuízo e, posteriormente, como pena, trabalhar por um tempo proporcional ao dano causado. O saldo negativo teria que se tornar um saldo positivo proporcional. Afinal, se apenas zerássemos a conta, não haveria punição, mas só reparação. Naturalmente, como não penso que o indivíduo deva ser apartado da sociedade e como ele precisaria se sustentar nela. Eu penso esse trabalho comunitário, digamos assim, para seu tempo livre. E se ele se recusasse? Bem, então, eu penso que ele deveria ser tratado como se trata hoje um fugitivo de um presídio. Em último caso, poderiam usar munição letal contra ele.

Penas alternativas como o trabalho comunitário também têm inúmeras vantagens, se pensarmos de uma forma mais consequencialista. Um detento perde seu contato com a realidade. O mundo dele passa a ser o aquário da prisão. É óbvio que o retorno será muito difícil, para muitos, até impossível. É melhor para todos que a sociedade veja alguém que, episodicamente, violou um direito como uma pessoa qualquer que, nem por isso, representa um risco maior que qualquer outro. Isso só acontece se a pessoa não é retirada do convívio com as demais. A prática de um crime não deveria significar a perda de todos os outros direitos, a anulação da pessoa enquanto tal, mas apenas a necessidade de uma restrição temporária à sua liberdade, até que você retribua com um bem o mal que fez.

Pelos mesmos motivos, eu defenderia que o trabalho penal fosse praticado na companhia de outros empregados comuns, e não de outros condenados. Por sinal, não me parece que reunir condenados em um mesmo espaço seja uma ideia minimamente inteligente. Além da possibilidade de que o detento adquira novas habilidades criminosas e conheça futuros comparsas, muitas vezes, ele ainda estará recebendo uma pena maior do que a privação da liberdade de ir e vir, já que, além de ser submetido às ordens do sistema em si, ele ainda poderá ser submetido às ordens dos demais. 

Eu não conheço caso de presídio eficiente no que tange à proteção de um detento quanto aos desmandos de outro, sendo que ninguém foi condenado a isso. Na verdade, eu não vejo sequer vontade para o enfrentamento do problema, visto que grande parte da população acredita que direitos humanos não devem se aplicar a condenados. Aliás, é interessante notarmos que, uma vez presidiários, o ladrão de galinha e o maior dos facínoras passam a ser o mesmo diante da sociedade. É interessante a esse respeito a cena de Orange Is The New Black, em que um carcereiro experiente ensina a mais jovem que ela não deve se referir a detentas pelos nomes, mas apenas como "detentas", porque, para o sistema, as detentas devem sentir que são todas iguais. Isso mostra o desejo de aniquilação da personalidade. Esse projeto, infelizmente, é bem sucedido, porque nós, aqui fora, também passamos a pensar em todos eles, lá dentro, como iguais.

Enfim, posso estar errada. Como não sou especialista, já devem existir milhões de propostas melhores do que a minha. Meu objetivo com este post é apenas te convidar a refletir um pouco sobre o absurdo do sistema penitenciário estatal, que massacra milhões mundo afora, em vez de ficar aí choramingando apenas por algumas notícias isoladas de linchamento. E veja que eu nem falei das condições das cadeias e presídios do Brasil, que fazem as instalações da série parecerem um palácio...

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